Por Joelmir Pinho
Como deve ser do conhecimento da maioria dos leitores, no dia 16 de outubro desse ano o vereador Roberto Anastácio [Podemos], do município do Crato, no Cariri cearense, apresentou projeto de emenda à Lei Orgânica Municipal através do qual propunha “a vedação da ideologia de gênero na rede municipal de ensino”, numa redação recheada de equívocos conceituais, erros técnicos grosseiros e conteúdo inconstitucional [ver artigo anterior]. A proposta gerou a imediata reação de várias instituições, organizações e segmentos sociais, a exemplo da Ordem dos Advogados do Brasil [OAB] – subsecção Crato, do Laboratório de Pesquisa em História Cultural [LAPEHC] da Universidade Regional do Cariri e de movimentos sociais locais.
Após o recebimento da matéria pela Mesa Diretora da Câmara Municipal do Crato, o projeto foi encaminhado às devidas comissões permanentes da casa, dentre elas a Comissão de Constituição e Justiça, para análise e parecer conforme estabelece o rito do processo legislativo.
A Comissão de Constituição e Justiça [CCJ], obrigatória em todas as casas legislativas, tem o papel de identificar, na fase de instrução, se o projeto de lei atende, quanto ao seu conteúdo e quanto a sua forma, os requisitos constitucionais para a sua tramitação. O artigo 66 do Regimento Interno da Câmara do Crato estabelece que “compete à Comissão de Constituição e Justiça manifestar-se sobre todos os assuntos entregues à sua apreciação quanto ao seu aspecto constitucional, legal ou jurídico e quanto ao seu aspecto gramatical e lógico, quando solicitado o seu parecer por imposição regimental ou por deliberação do Plenário”.
Contudo, os vereadores integrantes da referida Comissão, ignorando a inconstitucionalidade da proposta e o disposto no próprio Regimento Interno da Câmara, optaram por apresentar um projeto substitutivo que, além de repetir erros técnicos e conceituais semelhantes aos do texto original, tornava mais fácil o processo de aprovação da matéria, uma vez que a mudança de projeto de emenda à Lei Orgânica para projeto de emenda ao Plano Decenal de Educação reduziu o quórum de aprovação de três quintos para maioria simples.
Apenas para esclarecimento do leitor, de acordo com o parágrafo primeiro do artigo 37 da Lei Orgânica do Crato, a proposta de emenda à Lei Orgânica “será discutida e votada em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos membros da Câmara Municipal” [redação dada pela Emenda n° 07, de 12 de setembro de 2001]. Assim, para aprovação da proposta como projeto de emenda à Lei Orgânica seriam necessários 12 votos e dois turnos de votação com intervalo de dez dias entre uma sessão e outra.
A manobra da CCJ deu certo e a proposta foi aprovada no dia 23 de outubro, com apenas 9 votos, em sessão única, bastante tumultuada e conduzida sem a devida observância ao processo legislativo.
No dia 31 de outubro o autógrafo da matéria aprovada no dia 23 foi entregue ao prefeito Zé Ailton [PP], que teve 15 dias úteis para decidir entre a sanção ou o veto. Na primeira opção a decisão do plenário da Câmara se converteria em lei por ato do chefe do Executivo Municipal, enquanto no segundo caso a matéria retornaria à Câmara, a quem caberia decidir pelo acatamento ou derrubada do veto.
Ignorando a inconstitucionalidade do projeto, o que lhe dava motivos de sobra para lançar mão da prerrogativa do veto, o prefeito Zé Ailton, cedendo à pressão de grupos de interesse dentro e fora do Legislativo Municipal, optou pela omissão e deixou correr o prazo de 15 dias sem se manifestar sobre a matéria.
Na ausência da sanção pelo chefe do Executivo Municipal, por força de lei o projeto retornou ao Legislativo para promulgação obrigatória, o que aconteceu na última terça-feira [28], por ato do vereador Florisval Coriolano [PRTB], presidente da Câmara Municipal do Crato. O que começou com um devaneio irresponsável de um vereador cratense agora tem nome: Lei nº 3.355/2017.
O que não podemos esquecer é que a omissão do prefeito Zé Ailton o torna cúmplice de uma das maiores imoralidades praticadas pelo Legislativo Municipal e revela os bastidores do poder cratense, que tende a colocar o corporativismo, os acordos políticos, os interesses pessoais e o fundamentalismo religioso acima do direito à “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” preconizada no inciso II do artigo 206 da Carta Magna de 1988 e apresentada como um dos princípios do ensino no Brasil.
Resta agora às organizações da sociedade civil, aos movimentos sociais e aos cidadãos e cidadãs cratenses recorrer da decisão que reúne insanidade, má fé e covardia, pela via judicial. Uma opção é o ingresso de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental [ADPF], instrumento destinado a evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público. Com a palavra o Ministério Público e as organizações da sociedade civil cratenses.
______________________________________________
Joelmir Pinho é graduado em Administração Pública pela Universidade Federal do Cariri [UFCA]. Blogueiro, associado fundador da Escola de Políticas Públicas e Cidadania Ativa [EPUCA] e consultor independente.