NADA SERÁ MESMO COMO ANTES?

Por Joelmir Pinho

Enquanto nossas atenções estão voltadas para os cuidados e o andamento da pandemia do coronavírus em todo o mundo e, no caso particular do Brasil, também para as crises diárias provocadas, de forma deliberada e totalmente irresponsável, pelo antipresidente¹ Jair Bolsonaro [sem partido], há uma máquina de violência e ódio que continua funcionando a todo vapor e, especialmente nesse momento, está apontada para os mais vulneráveis, para os indesejados e para os invizibilizados da sociedade de consumo. Muitos dos operadores dessa máquina apostam em situações de pandemia como a que estamos vivendo atualmente para colocar em marcha seus projetos míopes e sórdidos de “eugenia negativa”, tema sobre o qual escrevi em artigo publicado aqui no blog em julho de 2018 e incluído no meu livro “Janelas, uma coletânea de ideias e opiniões”, lançado em 2019 pelo selo editorial IbiKariri.

Raoni
Cacique Raoni Metuktire. | Foto: Reprodução

Um dos alvos dessa guerra que não cessa e não dá trégua é a população indígena, que passou a ser ainda mais hostilizada e atacada após a eleição de Jair Bolsonaro e exatamente em decorrência disso. Os velhos e novos inimigos da vida agora se sentem autorizados pelo próprio presidente da República a praticar toda e qualquer forma de violência contra quem quer que ouse se opor à sua ganância e à sua sanha de destruição em nome dessa ilusão chamada desenvolvimento. Como afirma o Manifesto do Piaraçu das lideranças indígenas e caciques do Brasil, parido durante o Encontro dos Povos Mebengokrê, realizado entre os dias 14 e 17 de janeiro desse ano, na aldeia Piaraçu, na Terra Indígena Capoto Jarina [MT], “está em curso um projeto político do governo brasileiro de genocídio, etnocídio e ecocídio”. O documento afirma ainda que “as ameaças e falas de ódio do atual governo estão promovendo a violência contra povos indígenas, o assassinato de nossas lideranças e a invasão das nossas terras”.

Em carta datada de 12 de março último, dirigida ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, representantes da Fundação Right Livelihood e da Survival International, em conjunto com 36 ganhadores e ganhadoras do Prêmio Right Livelihood, considerado um Nobel Alternativo, expressam suas preocupações com a segurança dos indígenas no Brasil, denunciam e relembram vários casos de violência praticados no último ano contra lideranças indígenas, defensores de direitos humanos e ambientalistas no país. Destacam a perseguição política e a tentativa de criminalização sofrida por militantes que atuam na proteção da floresta contra incêndios criminosos na região de Alter do Chão [PA] e o assassinato de três líderes indígenas Guajajara no Maranhão.

Os signatários e as signatárias do documento também cobram do governo brasileiro as medidas necessárias para garantir a segurança de Davi Kopenawa Yanomami, liderança indígena de Roraima e defensor dos direitos humanos, que “tem denunciado atividades de mineração ilegal em território Yanomami por décadas”. Davi, que em 2019 recebeu o Prêmio Right Livelihood, está sob sérias ameaças que se estendem a todo o seu povo, inclusive nesse período de pandemia do coronavírus.

Entre os agraciados com Prêmio e subscritores da carta entregue ao ministro Sérgio Moro estão organizações brasileiras como a Comissão Pastoral da Terra [CPT] e o Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra [MST], além de personalidades como o biólogo argentino Raúl Montenegro, a física e ativista ambiental indiana Vandana Shiva e a jovem ativista sueca Greta Thunberg.

Eldorado Carajas Sebastiao Salgado
Massacre de Eldorado dos Carajás | Foto: Sebastião Salgado

A reforma agrária que nunca veio

A maior parte deste artigo foi escrita no último dia 17 [sexta-feira]. Nessa mesma data, há 24 anos [1996], o mundo tomava conhecimento, estarrecido, do episódio que entraria para a história como o Massacre de Eldorado dos Carajás. Ali, na curva do S da rodovia PA-150, vinte e um camponeses sem terra foram mortos durante uma violenta ação da Polícia Militar paraense. Dezenove morreram no local do massacre e mais duas vidas seriam perdidas no hospital, em decorrência da ação policial. Dos 19 mortos na curva do S, 8 foram assassinados com seus próprios instrumentos de trabalho [foices e facões], enquanto os outros 11 foram mortos à bala, alguns com características claras de execução como tiros na nuca e na testa.

Eu havia participado do MST por 3 anos e em 1996 fazia cerca de 5 anos que tinha deixado o Movimento para me dedicar a projetos pessoais. Um dos últimos lugares por onde passei nessa breve e intensa jornada de três anos no MST foi o Maranhão que, junto com o vizinho Pará, representava [e ainda representa] uma das regiões mais violentas do país quando o assunto é a questão agrária. Conheci de perto o poder do latifúndio e senti na própria carne o peso do braço armado do Estado naquele pedaço de Brasil. Para quem tiver interesse em conhecer melhor essa triste história, que não pode ser esquecida, recomendo o livro “O massacre: Eldorado do Carajás – uma história de impunidade” [2007], do jornalista Eric Nepomuceno, reeditado em 2019 pela Editora Record.

Almir Gabriel, governador do Pará à época do massacre, morreu em 2013 sem sequer ter sido indiciado no inquérito que apurou o sangrento episódio e o então secretário de Segurança Pública do Pará, Paulo Sette Câmara, também nunca precisou dar qualquer explicação à Justiça sobre o ocorrido. Não bastasse esse absurdo, como lembra o jornalista Eric Nepomuceno, em artigo publicado no Brasil de Fato nesta sexta-feira [17], Câmara “tornou-se consultor especializado justamente em segurança pública”.

Quase um quarto de século depois de Carajás, a violência no campo segue galopando no dorso largo da impunidade, especialmente após a chegada de Jair Bolsonaro à presidência da República. Aliás, no dia 31 de agosto de 2019 o antipresidente anunciou em almoço com jornalistas, a intenção de conceder indulto natalino [perdão] a policiais envolvidos nos massacres do Carandiru [1992] e de Eldorado dos Carajás [1996], o que não se concretizou porque os dois episódios foram considerados crimes hediondos, o que veta a seus autores o benefício do indulto.

E foi o próprio Gabinete de Segurança Institucional [GSI] da Presidência da República, comandado pelo general Augusto Heleno, que protagonizou um dos atos recentes mais insanos desse [des]governo. No dia 27 de março, em pleno período de pandemia do coronavírus, o GSI publicou no Diário Oficial da União [DOU] a Resolução nº 11, datada do dia anterior, que registra as deliberações do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro [CDPEB], aprovadas no início de março.

Entre as decisões tomadas pelo Comitê, composto exclusivamente por representantes do governo federal, está a aprovação da Matriz de Responsabilidades dos órgãos que o integram, “com as ações voltadas para as políticas públicas destinadas às comunidades que habitam a área de interesse do Estado na consolidação do Centro Espacial de Alcântara”, foco do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas de Alcântara, assinado em março de 2019 entre os governos do Brasil e dos EUA e em vigor desde o dia 16 de dezembro, após passar pela Câmara e o Senado. Rejeitado pelo Congresso Nacional durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso [PSDB], o acordo foi retomado no final do governo Temer [MDB] e consolidado por Bolsonaro, permitindo que empresas estadunidenses usem a base de Alcântara, no Maranhão, para lançar os seus satélites.

Em virtude da localização geográfica do CEA, as vantagens econômicas para as empresas estadunidenses serão muitas, permitindo-lhes maior economia nos lançamentos [estima-se uma economia de 30% em combustível] e maior competitividade na satelitização. Para além disso, como destacou o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC [UFABC], Flávio Rocha, em entrevista para o Brasil de Fato em março de 2019, o acordo busca “um alinhamento geopolítico a todo custo, a curto prazo, com os Estados Unidos” e coloca a nossa soberania nacional sob perigo. Especialista em geopolítica e segurança internacional, Flávio Rocha avalia que o maior risco é uma perda de autonomia política e ideológica do Brasil para desenvolver uma série de tecnologias que seriam de interesse nacional. “Essas tecnologias nos permitiriam escolher parceiros estratégicos, parceiros para desenvolver toda uma gama de ciência e tecnologias, que poderiam colocar o Brasil em um patamar distinto do que ele tem hoje na comunidade científica mundial”, enfatiza.

Voltando à resolução do CDPEB, o que chama a atenção é que, embora o texto publicado no DOU faça referência à aprovação das “diretrizes destinadas a orientar a elaboração do Plano de Consulta às comunidades quilombolas do município de Alcântara”, tudo o que vem depois é uma declaração líquida e certa da remoção e reassentamento das famílias, ignorando totalmente o direito de recusa das mesmas, razão de ser da própria consulta prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho [OIT] da qual o Brasil é signatário. Aqui vale lembrar que o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988 estabelece que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva”, o que dá margem para o questionamento da própria constitucionalidade da Resolução nº 11.

superlotação carcerária

Depósitos de carne humana

No contexto urbano, um dos grupos mais suscetíveis aos efeitos da pandemia da covid-19 é a população carcerária, especialmente em virtude da superlotação e das precárias condições sanitárias e de saúde das prisões em todo o país. Dados do Infopen, o sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, apontam que em dezembro de 2019 o Brasil tinha uma população carcerária de 748.009 pessoas, sendo que desse total, 29,75% eram presos provisórios, portando ainda sem condenação. A mesma fonte revela que no final de 2019 a população carcerária brasileira com idade superior a 60 anos ultrapassava 10 mil pessoas, enquanto aquela com agravos transmissíveis chegava a 31.742 homens e mulheres. Some-se à população total anunciada acima, 7.265 pessoas presas em outras unidades, como as cadeias públicas.

O fato é que o Brasil encerrou o ano passado com 755.272 pessoas privadas de liberdade, em um sistema que dispunha de apenas 442.349 vagas. Há aqui uma primeira discussão necessária: faltam prisões ou sobram presos? Um dos maiores desafios a ser enfrentado nesse campo está relacionado com a premência da superação da cultura do encarceramento, tão fortemente arraigada no meio jurídico, entre os agentes de segurança pública e na própria sociedade. Essa mesma sociedade que, em boa parcela, acredita que “bandido bom é bandido morto” e agarrou-se a essa crença para justificar seu voto no apologista da tortura e amigo de milicianos Jair Bolsonaro.

Como nos alerta Fernanda Orsomarzo, juíza de Direito no Paraná, em um texto visceral [O fundo do poço de cada dia] publicado no livro “Prisioneiros e juízes: relatos do cárcere” [Giostri, 2017], “o fundo do paço esconde hipocrisia”, para em seguida enfatizar que “as maiores atrocidades já cometidas na História se originaram justamente na ideia de que alguns seres não possuem dignidade intrínseca”. Apenas para registro, mais da metade da população carcerária braseira [50,96%] está presa por crimes contra o patrimônio, ficando os crimes contra a pessoa com 17,36% do total.

Um levantamento da Agência Pública, com informações do Ministério da Saúde, aponta que em 2018 foram confirmados mais de 10 mil casos de tuberculose entre detentos no Brasil, superando os números absolutos dos 10 anos anteriores. O estudo, que escancara a fragilidade da saúde da população carcerária brasileira em meio à pandemia do coronavírus, revela que para cada dez casos confirmados de tuberculose no Brasil, um ocorreu em penitenciária. Além disso, segundo a mesma fonte, quatro em cada dez presídios brasileiros não possuem consultórios médicos, quase metade [48%] não tem farmácia ou sala de estoque para medicamentos e 81% não contam com sala de lavagem e descontaminação.

Em Roraima, estado com a maior superlotação carcerária do país [4 detentos por vaga] a situação chega a ser terrificante. Segundo a jornalista Cecília Olliveira, em artigo publicado no The Intercept Brasil [24/3], ao tentar justificar a impossibilidade de atendimento integral da determinação da juíza Joana Sarmento, responsável pela Vara de Execuções Penais, para que o Governo do Estado adotasse medidas de combate ao coronavírus no Sistema Prisional de Roraima, o secretário da Justiça e Cidadania, André Fernandes, “disse não haver água encanada ‘para consumo humano e nem para que seja realizada a constante higienização das mãos dos reeducandos’ na Cadeia Pública Masculina de Boa Vista e na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo”, a mesma que no início desse ano viveu um surto de piodermite associada à infecção por escabiose [sarna humana] não tratada, causando coceiras intensas, necrose e até paralisia.

Em janeiro último, período do surto, a PAMC tinha capacidade para 480 internos, mas “abrigava” 2.086 e pelo menos 29 chegaram a ser internados com a doença que, nas palavras dos próprios pacientes, causava a sensação de que a pessoa estava sendo comida viva. Na última segunda-feira [13] a PAMC tinha registrado os dois primeiros casos de infecção por coronavírus, número que já havia dobrado na sexta-feira [17].

A Penitenciária Agrícola de Monte Cristo tem um longo histórico de violência e desrespeito aos direitos humanos mas, o que poderíamos imaginar ser a exceção, acaba sendo a regra em todo o Brasil, com algumas variações aqui e acolá. No geral, os presídios são mesmo depósitos de carne humana para onde é mandada uma parcela expressiva dos indesejáveis, da escória da sociedade, aqueles e aquelas para quem a condenação em razão da cor da pele, da identidade visual e corporal, do endereço e da classe social chega antes de qualquer possibilidade de justiça.

pop-rua
Foto: Alex Silva/Estadão Conteúdo

Invisibilização até nas estatísticas

Conheci seu Pedro lá pelos meados da década de 1990, no centro de Fortaleza, capital cearense. Anos antes um problema familiar o empurrara para o álcool, daí para a dependência química e logo em seguida para as ruas. Nos encontrávamos pelo menos duas ou três vezes por semana, já que o “novo endereço” de seu Pedro ficava no meu caminho para o trabalho. Com o tempo, comecei a sair de casa mais cedo para que me sobrasse um pouco mais de tempo para um papo com meu amigo “morador” da esquina das ruas São Paulo e Floriano Peixoto, ali nas proximidades da histórica Praça dos Leões. Às vezes tomávamos um café juntos enquanto conversávamos, sentados no chão da calçada ou em alguma lanchonete das redondezas, embora em alguns momentos nem eu nem ele tivéssemos dinheiro para o café. Nessas ocasiões, a companhia um do outro e o bom papo nos bastavam.

Os rumos que a vida daquele homem foi tomando a partir de uma certa altura foram lhe afastando de muitas pessoas e hábitos, como ele mesmo costumava relatar. Só não lhe afastaram dos livros, agora não mais comprados em livrarias, mas recebidos em doação ou encontrados no lixo, o que lhe causava, ao mesmo tempo, alegria e tristeza. Ele dizia não entender como alguém era capaz de jogar um livro no lixo. Aliás, durante nossos encontros falávamos de muitos comportamentos humanos que não entendíamos.

Lembro-me de certa vez ter encontrado seu Pedro lendo Sagarana, o livro de contos de João Guimarães Rosa. Comentei sobre minha dificuldade de ler a obra roseana, especialmente o consagrado Grande Sertão: Veredas, atribuindo essa dificuldade à linguagem da obra, ambientada nos sertões das Gerais. É quase um dialeto, falei como que querendo me justificar. Ele me olhou de forma muito generosa, sorriu pelos cantos da boca e apenas me disse: experimente ler com o coração. Como bom observador e escutador, meu amigo já havia percebido o quanto eu era [e ainda sou] mente. Desde então tenho buscado exercitar a leitura a partir do coração, o que tento trazer também para a escrita. Nem sempre consigo e sigo nessa busca que poderá ser permanente, o que não me parece um problema, nem me incomoda.

Perdi contato com seu Pedro já há muito tempo e creio até que ele não esteja mais entre nós. Contudo, fico imaginando as dificuldades que ele estaria enfrentando nesse momento de pandemia para seguir as orientações de cuidado e prevenção e para acessar o auxílio emergencial de R$ 600,00, sem computador ou celular, sem um CEP, sem CPF ou qualquer outro documento pessoal. Ou seja: sem os números e as siglas que funcionam quase como um pré-requisito ou uma senha de acesso à bu[r]rocracia estatal.

Para a população em situação de rua o Estado, que sempre esteve distante ou presente apenas pela via da repressão, nesse momento se torna ainda mais distante a começar pelo discurso. A principal orientação de todas as campanhas de prevenção contra o coronavírus é para que as pessoas fiquem em casa. Para quem está em situação de rua a referência de casa [abrigo] é, no máximo, o viaduto, a ponte ou a marquise de algum prédio.

A edição 669 do Especial Cidadania [mar/2019], uma iniciativa do Senado Federal, alerta para a inviabilização desse público, inclusive nas estatísticas oficiais. Como aponta a publicação, “na ausência de averiguações confiáveis sobre quantos são e como vivem esses brasileiros, torna-se mais difícil elaborar e implementar medidas que os devolvam à plena cidadania”.

De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], tomando por base uma estimativa de pouco mais de 100 mil pessoas em situação de rua no Brasil, em 2015 apenas 47% dessa população estava no Cadastro Único de Programas Sociais do governo federal. As informações estão disponíveis em um texto para discussão publicado pelo próprio IPEA e assinado pelo especialista em políticas públicas e gestão governamental, Marco Antonio Carvalho Natalino.

A violência, em suas múltiplas formas, também faz parte do dia a dia da pop-rua, como relata Anderson Miranda durante conversa com o jornalista Rôney Rodrigues, que assina a reportagem publicada no Outras Palavras em agosto de 2019. “Várias vezes jogaram álcool em mim e tentaram colocar fogo, pessoas saindo das baladas mijaram em mim, me deram comida estragada de propósito pra eu passar mal. Eu até fui violentado por um policial quando era criança e vivia nas ruas”, narra Anderson, um dos sobreviventes dos ataques ocorridos nas madrugadas dos dias 17 e 18 de agosto de 2004 contra pessoas em situação de rua que dormiam na Praça da Sé, no centro de São Paulo.

Desde então a violência contra a população em situação de rua só tem crescido e essa também ganhou força após a eleição de Jair Bolsonaro, seguindo a trilha de ódio e intolerância presentes nos discursos e gestos do clã Bolsonaro e seus seguidores, desde antes de 2018.

emergencia climatica

Não há saída no capitalismo

Como escreveu recentemente a jornalista Eliane Brum, o futuro pós-coronavírus já está em disputa. Para a autora de Brasil, construtor de ruínas: Um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro [Arquipélago Editorial, 2019], muito além da emergência de lutar pela vida ameaçada pelo vírus, é preciso lutar pelo futuro pós-vírus. “Se não o fizermos, a retomada da ‘normalidade’ será a volta da brutalidade cotidiana que só é ‘normal’ para poucos, uma normalidade arrancada da vida dos muitos que diariamente têm seus corpos esgotados”, alerta Eliane.

Nunca fui muito dado a análises de conjuntura ou coisas do gênero, talvez porque estas sempre me pareceram meio dogmáticas e/ou proféticas. Contudo, considero primordial entendermos como essa disputa a que Eliane Brum se refere, está se desenhando e como ela poderá se desenrolar ao longo dos próximos anos. O que apresentarei a seguir é um olhar muito pessoal, desprovido de qualquer intenção de análise mais elaborada e, muito menos, da afirmação de qualquer verdade inquestionável.

Contudo, parece-me que, dentro dos marcos do próprio capitalismo teremos, de um lado, aqueles que tentarão nos convencer de que a pandemia do coronavírus veio para nos avisar da necessidade de reformar o capitalismo, torna-lo mais humano, preservar a democracia liberal burguesa e tudo mais que caiba nesse leque conciliador que se apoiará, principalmente, no argumento de que é preciso recuperar a economia, voltar a produzir e desenvolver. Nesse campo estarão, inclusive, muitos da chamada esquerda em todo o mundo, , sem enxergar que foi também a ilusão desenvolvimentista, associada ao antropocentrismo e a outras miopias, que nos trouxe até aqui.

Do outro lado, estarão algumas das piores mentes que esse sistema foi capaz de parir. Aqueles que desdenham da emergência climática, defendem com unhas e dentes a ideia do Estado mínimo, querem o “inevitável” sacrifício dos mais pobres para tirar o sistema da crise e recusam qualquer ideia de renúncia a seus privilégios. Além disso, se pautam pelo ódio, a intolerância e o preconceito e se alinham, consciente ou inconscientemente, aos interesses das grandes corporações e grupos econômicos, para quem a pandemia do coronavírus e seus efeitos na geopolítica mundial, na economia real e no modo de vida das pessoas, podem ser só mais uma grande oportunidade de negócios lucrativos, ainda que às custas de muitas vidas humanas e não humanas.

Aparentemente opostos, os dois projetos servem aos mesmos interesses, ainda que por caminhos diferentes. Contudo, nenhum deles serve aos mais pobres e à mãe Terra. Nenhum será capaz de tirar o planeta da agonia a que ele foi submetido bem antes da pandemia, que apenas expôs nossas feridas e escancarou a insustentabilidade das escolhas e renúncias da espécie humana até aqui.

Portanto, se não nos servem as alternativas de salvação do próprio capitalismo, qual projeto pautará a agenda dos mais pobres, dos trabalhadores, dos povos e comunidades tradicionais, dos sem-terra, dos sem-teto, dos excluídos e marginalizados?

Certamente, não há uma resposta pronta, nem pode haver. Essa precisará ser uma construção coletiva urgente, a partir das muitas reflexões e experiências acumuladas, especialmente por povos e comunidades tradicionais, comunidades rurais e das periferias geográficas e políticas do Brasil e de várias outras partes do mundo.

Nesse caminhar que antecede à pandemia e que precisará se intensificar a partir de agora, a centralidade da vida, a solidariedade e o cuidado, como valores essenciais e não como obrigação, podem ser bússolas a nos guiar na construção do porvir, na caminhada rumo à utopia de comunidades cuidadoras. Vale lembrar que em tempos de autoritarismo nada disso será possível sem uma disposição coletiva muito intensa à desobediência civil e sem o acolhimento de outra perspectiva de poder, pautada na partilha, na empatia e no afeto. Cuidemos! Pois, como nos ensina o poeta, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

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Joelmir Pinho é educador, gestor social, blogueiro, curioso e eterno aprendiz. É autor do livro “Janelas, uma coletânea de ideias e opiniões”, publicado em 2019 pelo selo editorial IbiKariri. É também associado fundador e atual diretor geral da Escola de Políticas Públicas e Cidadania Ativa [EPUCA].

¹ Recorro aqui a um conceito bastante significativo e adequado, trazido pela jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum.

Publicado por Joelmir Pinho

Um militante em defesa da vida humana e não humana. Um aprendente e um pensador conectado com os saberes e fazeres das gentes simples dos sertões. Um apaixonado pela vida e pela arte do bom viver a partir da comunhão, da partilha e do cuidado como compromisso ético.

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