POR UMA PEDAGOGIA DA INTERDEPENDÊNCIA E DO CUIDADO

Foto | Marcos Vieira [Exposição Fotográfica Iandé Á’tã Joaju – Juntos Somos Fortes]

Por Joelmir Pinho

Durante esses meses de distanciamento social por força da pandemia do novo coronavírus tenho acompanhado e até participado de forma mais direta de alguns diálogos sobre os destinos da educação formal, das instituições de ensino e das relações e processos de ensino-aprendizagem em um futuro pós-pandemia. Em quase todos esses diálogos a preocupação central da maioria dos participantes está voltada para questões como a recuperação de conteúdos e o cumprimento da quantidade de dias letivos obrigatórios pelas normas vigentes, evidenciando a velha visão gerencialista da educação formal, em detrimento da dimensão pedagógica.

Essa lógica perversa, agravada pela opção por aulas virtuais por parte de muitas instituições de ensino durante esse período de pandemia – algo totalmente novo para a grande maioria das pessoas envolvidas nessas atividades – tem levado professores, pais, responsáveis e os próprios estudantes a processos de esgotamento que se revelam em choros frequentes, falta de paciência, excesso ou falta de apetite e exagero na reação a pequenas coisas. Esse é um quadro que aponta diretamente para a Síndrome de Burnout, também conhecida como Síndrome do Esgotamento Profissional. De acordo com a publicação Saúde de A a Z, do Ministério da Saúde, trata-se de um “distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demanda muita competitividade ou responsabilidade”. Esse cenário tem acentuado o já conhecido quadro de adoecimento dos profissionais da educação e o desencantamento de crianças e adolescentes com a aprendizagem escolar.

Voltando aos encontros virtuais dos quais tenho participado, neles pouco tem se falado da urgência de refletimos sobre as escolhas e renúncias que nos trouxeram até aqui, escancaradas durante esses tempos de pandemia. Da mesma forma, tem sido escasso ou quase inexistente o reconhecimento de que o retorno às escolas precisará vir acompanhado do diálogo amplo sobre o rastro de exploração e destruição que a espécie humana deixou pelo caminho ao longo de sua jornada terrena, movida pela perversa lógica utilitarista e antropocêntrica que nos conduziu à reificação da mãe terra, à rejeição dos saberes ancestrais e dos povos originários e nos apartou da grande teia da vida.

Se essas questões forem mais uma vez sufocadas pela preocupação com os indicadores educacionais e pelo compromisso primeiro das instituições de ensino, do Estado e de muitos profissionais com um modelo de educação formal conteudista e a serviço do deus mercado, estaremos apenas reproduzindo o velho modelo e alimentando o mesmo ciclo de negação da vida. Estaremos, novamente, ignorando a interdependência de todos os seres vivos, questão central nas próximas décadas para a sobrevivência da humanidade e da qual a percepção ecológica rasa prevalecente em nossas instituições de ensino não consegue dar conta.

Daí a urgência de inserirmos na agenda dessas instituições uma percepção ecológica profunda¹, que, nas palavras do físico austríaco Fritjof Capra, “reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos todos encaixados nos processos cíclicos da natureza [e, em última análise, somos dependentes desses processos]”. Capra destaca que os maiores problemas de nossa era [mudanças climáticas, pobreza, energia, água] estão conectados, são interdependentes, assim como suas soluções.

Além disso, o modelo de ensino sobrejacente nos afastou de qualquer encontro ou reencontro com nossa ancestralidade, colocando os saberes e fazeres dos povos originários, das comunidades tradicionais e de todas as pessoas não detentoras de títulos acadêmicos como de menor valor ou, quando muito, objetificando-os. Não por acaso, as práticas extensionistas das universidades são, quase sempre, uma reprodução do velho modelo colonial, colocando sempre a comunidade como extensão da universidade, quando a relação deveria ser exatamente inversa: a universidade deveria ser uma extensão da comunidade.

Sobre nossa ancestralidade, o ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas Ailton Krenak, em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” [Companhia das Letras, 2019], nos lembra que “se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos”.

Somente quando reconhecermos a interdependência de todos os seres vivos e sua importância para a vida na grande casa comum – a mãe Terra – e para a própria permanência da nossa espécie no planeta, seremos capazes de compreender a necessidade do cuidado e dar-lhe a devida dimensão pedagógica. Isso significa coloca-lo no centro de nossos fazeres pedagógicos, acolhendo o diálogo, a escuta, o respeito à diversidade, o reconhecimento dos múltiplos saberes e fazeres individuais e coletivos como práticas cotidianas. No caso específico de uma instituição de ensino, trata-se de compreendermos sua dimensão comunitária e nos comprometermos com a construção de uma comunidade cuidadora, pautada pelo afeto, pela partilha e por uma perspectiva ética biocêntrica. Em seu livro “Saber Cuidar Ética do humano – compaixão pela terra” [Vozes, 1999], o ecoteólogo, filósofo e escritor Leonardo Boff nos lembra que “o cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade”.

Contudo, para que esses processos se desenvolvam será fundamental rompermos, pormos abaixo – em alguns casos literalmente – os muros que nos separam da perspectiva de mundo e de educação proposta nos parágrafos anteriores. Especialmente as velhas estruturas escolares, tanto as físicas quanto as simbólicas, não serão capazes de dar conta dos desafios e urgências que se apresentam para um futuro que já é ontem.

Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no dia 5 de dezembro de 2001, o educador, psicanalista e escritor Rubem Alves recorre a um aforismo para afirmar que há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas. “Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle”, lembra o escritor mineiro. E ele segue, enfatizando que “Engaiolados, o seu dono pode levá-las para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo”.

Por outro lado, “Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são os pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar”, destaca Rubem Alves. E arremata: “Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado”.

Os espaços arquitetônicos, inclusive os escolares e acadêmicos, carregam em si uma série de símbolos e linguagens e têm papel preponderante na constituição de escolas gaiolas ou escolas asas. Que histórias, memórias e identidades esses espaços revelam ou escondem e até reprimem? Quais as relações entre arquitetura escolar, corpo e condições de saúde nos ambientes escolares e acadêmicos? Qual o papel da arquitetura escolar na melhoria ou no comprometimento das condições de saúde e da qualidade de vida dos educandos e educadores e como isso afeta os processos de ensino e aprendizagem escolares? De que modo a arquitetura de instituições de ensino interfere, positiva ou negativamente, nos processos de aprendizagem, desde a educação infantil até a universidade?

Estas questões permeiam as inquietações que têm pautado minha prática como educador e meu exercício de pensar a educação como processo, inserido em múltiplos contextos e em diálogo estreito com aspectos aparentemente externos, entre os quais se inclui a arquitetura dos espaços físicos onde as experiências de ensino e aprendizagem se desenvolvem.

Para além dos aspectos físicos, arquitetônicos em si, as construções dialogam à cerca baixa com noções de pertencimento ou exclusão, a depender do seu encontro ou seu distanciamento com as necessidades, desejos, símbolos e representações de seus usuários e frequentadores.

Contudo, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal indicador nacional oficial de monitoramento da qualidade da Educação no Brasil, não leva em conta a avaliação do espaço físico escolar, considerado por vários profissionais da educação como parte do currículo. O Ideb é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e das médias de desempenho no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Relacionar aprendizagem, pedagogia e as suas respectivas modalidades de ensino e sua correta tradução espacial tem sido o esforço de vários estudiosos. A arquiteta Doris Kowaltowski, em seu livro “Arquitetura escolar. O projeto do ambiente de ensino” [Oficina de Textos, 2011], defende que a qualidade do desempenho escolar é influenciada pelo edifício e suas instalações, destacando ainda que elementos como funcionalidade, usabilidade, identidade com a pedagogia e infraestrutura configuram a distinção e o reconhecimento do ambiente escolar em suas múltiplas funções.

Essa mirada aponta na direção contrária à concepção tradicional dos espaços físicos escolares, conformados por salas de aula organizadas, sequencialmente, ao longo de grandes corredores, visando, dentre outros aspectos, facilitar a supervisão dos estudantes, bem ao gosto da pedagogia tradicional que, nas palavras do filósofo e educador Dermeval Saviani, tem “uma visão filosófica essencialista de homem e uma visão pedagógica centrada no educador, no adulto, no intelecto, nos conteúdos cognitivos transmitidos pelo professor aos alunos, na disciplina, na memorização”. O fato é que já existem vários estudos e discussões que apontam na direção da arquitetura escolar como o “terceiro professor”, depois dos educadores e dos educandos ou, na perspectiva de alguns autores e autoras, depois dos professores e dos materiais e recursos didáticos.

Como nos lembra o filósofo francês Michel Foucault, em sua célebre obra “Vigiar e punir: nascimento da prisão” [Vozes, 1987], houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. “Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo — ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam”, destaca o filósofo francês.

Ao analisar a obra “O Homem-máquina”, do também filósofo francês Julien Offray de La Mettrie, publicada pela primeira vez em 1747, Foucault afirma que esta é, ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de ‘docilidade’ que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.

Nesse contexto de redução da alma e adestramento do corpo, a arquitetura escolar sobrejacente, ao longo dos tempos, tem cumprido papel central, à medida que sua concepção privilegia espaços fechados, semelhantes a gaiolas de concreto, que servem prontamente à inibição de expressões, inclusive dos corpos, ao cerceamento de liberdades e à inibição de criatividades.

Na perspectiva foucaultiana, a disciplina – não como respeito ao coletivo, mas como elemento de inibição e controle – “aumenta as forças do corpo [em termos econômicos de utilidade] e diminui essas mesmas forças [em termos políticos de obediência]”. E o próprio Foucault esclarece: “Em uma palavra: ela [a disciplina] dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”.

Constituídos historicamente como ambientes inibidores de expressão e afeto, desprovidos de condições objetivas e subjetivas que conduzam ao cuidado e carentes de conforto ambiental, os espaços escolares convencionais acabam por gerar adoecimentos dos corpos e das mentes de educadores e educandos, resultando em interferência direta nos processos de ensino e aprendizagem. Ao analisar a implantação do projeto padrão 023 da rede pública de ensino do estado do Paraná, a arquiteta e urbanista Giselle Godoi afirma, em documento datado de 2010, que no contexto das edificações escolares, o projeto padrão se insere como uma edificação escolar com vantagens de racionalização construtiva e economia, desconsiderando as condições de conforto ambiental, pelo menos como princípio. Na grande maioria dos casos o projeto padrão não possui flexibilidade de adaptação às características climáticas e do terreno onde poderá ser construído, acarretando condições desfavoráveis principalmente no conforto térmico da edificação, que interferem na produtividade, motivação e concentração dos usuários.

Entretanto, em várias partes do mundo podem ser vistas construções escolares qualificadas como sustentáveis, que dialogam de forma estreita com o conceito de arquitetura bioclimática, surgido na década de 1960, a partir de pesquisas dos irmãos Aladar e Victor Olgyay, vistos como precursores da área de conforto ambiental. Considerado a base da arquitetura ecológica, o bioclimatismo busca uma relação harmônica entre ambiente construído, clima e seus processos de troca de energia, visando, ao fim, o conforto ambiental humano, tanto no seu aspecto térmico, quanto luminoso e acústico.

Além de inter-relacionar a dimensão humana e suas necessidades físico-biológicas associadas ao conforto, a arquitetura bioclimática leva em conta a dimensão ecológica e a utilização de sistemas passivos de energia obtidos a partir o potencial climático e ambiental local. Ademais, o processo de construção bioclimática considera as dimensões econômica e cultural, especialmente no que se refere à preservação de padrões arquitetônicos locais, reforçando e promovendo a identidade arquitetônica regional, em encontro direto com o conceito de arquitetura vernacular, que pode ser dita, a grosso modo, como aquela feita com recursos naturais e técnicas próprias de uma dada região.

Escola Pluricultural Odé Kayodê [GO]

Várias experiências de escolas sustentáveis já são uma realidade aqui e em outros partes do planeta. É o caso do Colégio Estadual Erich Walter Heine e da Creche Municipal Hassis, a primeira em Santa Cruz [RJ] e a segunda em Florianópolis [SC]. Para além das fronteiras do Brasil, vale destacar a Meti School, construída a partir de arquitetura vernacular, em Rudrapur, Bangladesh. Outra experiência interessante é a Green School, uma escola de Bali, na Indonésia, construída com bambu.

Na Itália, a escola de Guastalla foi construída após um terremoto, em 2012, que destruiu duas escolas na região. Projetada pelo arquiteto Mario Cucinella, possui painéis fotovoltaicos, sistema de aproveitamento da água da chuva para irrigação do jardim e descargas dos sanitários e o uso de materiais naturais e reciclados. De acordo com a arquiteta e urbanista Juliana Rangel, especialista em arquitetura sustentável e bioarquitetura, o projeto da escola italiana integra o interior com o exterior, e nas áreas ao ar livre são estimulados os cinco sentidos das crianças: visão, audição, paladar, olfato e tato.

Outro importante conceito para o diálogo que aqui está sendo proposto é o de neuroarquitetura. No livro Neuroeducación. Solo se puede aprender aquello que se ama” [Alianza Editorial, 2013], o médico e neurocientista espanhol Francisco Mora lembra que o cérebro humano, a milhões de anos vive tendo contato visual, sentindo cheiros e tocando verdes, neves e gelos, sendo desenhado para viver dois terços de sua vida ao ar livre e em permanente visão de azuis infinitos. E ele interroga: Poderia ser este desconhecimento a origem de novas patologias, nunca antes conhecidas, em um cérebro em desenvolvimento?

Mora conclui destacando que tudo isso tem levado vários teóricos a considerar se a civilização ocidental, tida como a mais adiantada em tantas coisas, não estaria interpretando de forma equivocada a relação da nossa espécie com um novo macroambiente que, na sua visão e na de vários outros e outras, afeta o crescimento e o envelhecimento, os sentimentos e os pensamentos, a aprendizagem e até a memória ancestral dos seres humanos.

Olhando para um futuro mais próximo, talvez o nosso maior desafio no pós-pandemia, especialmente nas instituições de ensino, seja o exercício da partilha de experiências vividas e desejadas, sentimentos, sentidos, afetos e afetamentos. Assim, será fundamental exercitarmos a escuta como um ritual pedagógico inadiável e insubstituível, lembrando, contudo, que como costumava destacar Rubem Alves, todo mundo quer aprender a falar, mas ninguém quer aprender a ouvir. Escutar é complicado e sutil, dizia ele. Parafraseando Alberto Caeiro – um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa -, Rubem Alves nos ensina que não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. “É preciso também que haja silêncio dentro da alma”, enfatiza.


Joelmir Pinho é educador, gestor social, blogueiro, curioso e eterno aprendiz. É autor do livro “Janelas, uma coletânea de ideias e opiniões”, publicado em 2019 pelo selo editorial IbiKariri. É também associado fundador e atual diretor geral da Escola de Políticas Públicas e Cidadania Ativa [EPUCA].

¹ O termo surgiu quando, em 1972, o filósofo e ambientalista norueguês Arne Naess [1912-2009] publicou o artigo “The shallow and the deep, long range ecology movement. A summary”. No artigo, Naess distinguiu as correntes ambientais entre movimentos superficiais ou rasos [com tendência antropocêntrica e egocêntrica] e movimentos profundos [não antropocêntricos, mas ecocêntricos].

Publicado por Joelmir Pinho

Um militante em defesa da vida humana e não humana. Um aprendente e um pensador conectado com os saberes e fazeres das gentes simples dos sertões. Um apaixonado pela vida e pela arte do bom viver a partir da comunhão, da partilha e do cuidado como compromisso ético.

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