UMA DISTOPIA CHAMADA BRASIL

Por Joelmir Pinho

Um país afundado no desespero e em múltiplas privações. Um país em que o presidente e seus fanáticos seguidores bradam por liberdade, enquanto cerceiam liberdades e direitos fundamentais e ameaçam a vida de quem não cabe em suas bolhas de ódio e intolerância. Um país mergulhado em um looping distópico que tem paralisado nossas energias e esvaziado nossos sonhos, nos tornando reféns do medo e das incertezas sobre o porvir, como se, para os mais pobres, fosse possível ter certeza de algo em um sistema que se alimenta da desigualdade e da injustiça. Um país cada dia mais acostumado com a banalização do mal e com a ridícula ideia de que só nos resta esperar pelo milagre da democracia liberal burguesa que virá, na hora devida e dada, através da velha ilusão do “poder de mudança do voto”. Este é o Brasil que terminará 2021 e ingressará em 2022.

Um país com mais de 600 mil pessoas mortas em decorrência da sindemia¹ de Covid-19, do negacionismo como método de governo e da necropolítica patrocinada pelo presidente da República, que chegou ao absurdo de protagonizar cenas funestas como a imitação de uma pessoa com falta de ar, um dos sintomas graves da doença provocada pelo SARS-CoV-2. Um país em que o presidente da República, em sua cruzada contra as vacinas, ameaça divulgar os nomes dos servidores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária [Anvisa] que aprovaram a vacinação de crianças de cinco a onze anos de idade. Jair Bolsonaro [PL] declarou sua intenção de expor os servidores da Anvisa, durante live semanal realizada na quinta-feira [16/12], mesmo sabendo da existência anterior de ameaças de morte contra diretores da Agência e outras ameaças contra servidores e funcionários terceirizados do órgão, além de seus familiares, caso as vacinas contra Covid-19 viessem a ser aprovadas para crianças.

Entre eugenistas e aporofóbicos

O Brasil que chega ao século da genética carrega consigo as marcas da eugenia social e da aporofobia, herdadas de um longo período de escravidão e da perversidade que sempre acompanhou a parcela mais snobe das elites e da classe média deste país. Surgido na Inglaterra em 1883, a partir do pensamento do matemático Francis Galton, o conceito de eugenia toma por base a teoria da seleção natural das espécies para defender que era necessário impedir, entre a espécie humana, a reprodução de “indesejáveis”, o que incluía pessoas com vícios, prostitutas e “degenerados”. A partir daí a eugenia ganha forte viés social e a ideia de uma raça pura vai ser adotada, por exemplo, pelos nazistas para justificar a eliminação de judeus, negros, comunistas, pessoas com deficiência, ciganos e outros grupos considerados inferiores por Adolf Hitler e seus apoiadores.

Um dos primeiros países da América do Sul a contar com um movimento eugenista organizado, o Brasil fundou em 1918 a Sociedade Eugênica de São Paulo, contando com o apoio de médicos, membros da classe média e da elite econômica local. O movimento teve forte influência na construção da ideia de embranquecimento da população brasileira, que chegou a ser incluída no texto constitucional de 1934 [art. 138], incumbindo à União, aos estados e aos municípios, o estímulo à educação eugênica. Além do escritor Monteiro Lobato e outros nomes de expressão nacional, um dos principais personagens do movimento eugenista no Brasil na primeira metade do século XX foi o médico Renato Ferraz Kehl, autor de A Cura da Fealdade [1923] e dezenas de outros livros sobre o assunto. Kehl defendia uma “limpeza” da linhagem brasileira de qualquer resquício de povos negros e indígenas, visando erradicar o que ele considerava “feiura”. No Livro Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo [2020], a historiadora Pietra Diwan dedica um capítulo inteiro às teorias de “Renato Kehl, o médico do espetáculo”.

Foto | João Damásio/O Fotográfico/Estadão Conteúdo

O neologismo aporofobia [Do gr. Á-poros, pobre, e fobéo, aversão], concebido pela filósofa espanhola Adela Cortina, ganhou visibilidade no Brasil, nos últimos tempos, graças à militância crucial do padre Júlio Lancellotti. Autora do livro Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia [2020], Adela define o termo como “ódio, repugnância ou hostilidade ante o pobre, o sem recursos, o desamparado”. Para evidenciar que a aporofobia está mais próxima de nós do que imaginamos, a filósofa espanhola escreve que “é o pobre, o áporos que incomoda, inclusive o da própria família, porque se considera o parente pobre como uma vergonha que convém deixar de lado, ao passo que é um prazer ter o parente triunfante, bem situado no mundo acadêmico, político, artístico ou no dos negócios”. O religioso católico, cuja atuação pastoral está visceralmente comprometida com os direitos da população em situação de rua, vem liderando um movimento de denúncia de práticas de interdição de espaços públicos como viadutos, praças, mobiliário urbano, calçadas, áreas sob marquises e até em acessos a templos religiosos, com o fim último de impedir seu uso, mesmo que por uma noite, por pessoas pobres, geralmente em situação de rua ou temporariamente desabrigadas.

A aporofobia se evidencia também nas campanhas espelhadas por várias cidades do Brasil, que desestimulam a solidariedade e a ajuda aos mais pobres, promovendo a indiferença e ignorando os perversos contextos econômicos e sociais em que essas pessoas estão inseridas. Ou ainda, quando não nos comprometemos com a luta por políticas públicas de proteção e garantia de diretos fundamentais para uma parcela expressiva da população, historicamente excluída e invisibilizada, cuja condição de miséria foi acentuada durante o atual contexto de sindemia.

A criminalização da sobrevivência

Nessa distopia chamada Brasil, quase 28 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza e muitas crianças, no momento que você lê este artigo, ainda não fizeram a primeira refeição do dia nem sabem se o farão. Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional [Rede PENSSAN] e publicada em março de 2021, indicam que “do total de 211,7 milhões de brasileiros(as), 116,8 milhões conviviam com algum grau de Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome”. Esse mesmo Brasil segue como um dos países mais desiguais do mundo, de acordo com um estudo do Laboratório das Desigualdades Mundiais [World Inequality Lab], da Escola de Economia de Paris, lançado no início de dezembro deste ano. Por aqui, os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos e em 2021 os 50% mais pobres possuem apenas um por cento da riqueza nacional, enquanto a parcela do um por cento mais rico é dona de cerca da metade de toda a riqueza do país.

Em meio a essa distopia, no dia 29 de setembro último uma mulher de 41 anos, mãe de cinco crianças e adolescentes com idades entre 2 e 16 anos, foi presa em São Paulo por furtar alguns gêneros alimentícios que juntos somavam R$ 21,69. Ao ser presa, a mulher declarou ter furtado os alimentos por estar com fome, fato incapaz de impedir que o representante do Ministério Público de São Paulo, Paulo Henrique Castex, considerasse a conduta daquela mãe autora de um furto famélico um perigo para a sociedade. A visão do representante do MP é compartilhada pela juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo, Luciana Menezes Scorza, que acatou o pedido de Castex para conversão da prisão em flagrante em preventiva. Em sua decisão, a magistrada declarou que “a conduta da autuada é de acentuada reprovabilidade, eis que estava a praticar o crime patrimonial”. E a juíza segue afirmando que “mesmo levando-se em conta os efeitos da crise sanitária, a medida é a mais adequada para garantir a ordem pública, porquanto, em liberdade, a indiciada a coloca em risco, agravando o quadro de instabilidade que há no país”.

Enquanto isso, de acordo com levantamento do (M)Dados do site Metrópoles, entre março de 2020 e outubro de 2021, cartões de pagamento do governo federal [CPGF], mais conhecidos como cartões corporativos, foram usados para bancar 252 refeições, que somaram pouco mais de 84 mil reais, com um custo médio de R$ 333,55 por refeição. Ainda segundo a mesma fonte, “a maioria das despesas veio de servidores do Ministério da Defesa, principalmente daqueles que integram o Comando do Exército Brasileiro”. A pasta foi responsável por 99,1% de todos os gastos analisados, ficando o restante por conta do Ministério da Economia. Vale destacar que essas despesas não incluem o cartão corporativo da presidência da República, que segue com 98,7% de suas despesas sob sigilo, contrariando decisão do Supremo Tribunal Federal [STF], de novembro de 2019. Até setembro deste ano, Bolsonaro e seu entorno gastaram R$ 49,3 milhões através do CPGF.

No Portal da Transparência é possível apurar que, atualmente, existem 3.359 cartões corporativos emitidos pelo governo federal, dos quais 14 estão vinculados à presidência da República. Somente em 2021 [até outubro], os 14 cartões da presidência foram responsáveis por 35,58% das despesas feitas através de CPGF, totalizando mais de 15 milhões de reais em gastos da presidência da República por esse meio, sem que se saiba o que foi adquirido, quem comprou e quem forneceu, posto que são despesas classificadas como sigilosas.

O sequestro das instituições

Criadas com o objetivo de, pelo menos em tese, corrigir erros e omissões nos projetos de lei do orçamento apresentado anualmente ao Legislativo, por iniciativa do Executivo, as emendas de relator se transformaram em um grande festival de compra de apoio parlamentar durante o governo Bolsonaro, naquilo que ficou conhecido como orçamento paralelo, sobre o qual escrevi aqui em outubro último. Após várias denúncias de parlamentares da oposição, de organizações da sociedade civil e da imprensa, o plenário do Supremo Tribunal Federal [STF], confirmando decisão anterior da ministra Rosa Weber, determinou, no início de novembro e por ampla maioria, a suspensão da execução das emendas de relator de 2021, até o julgamento do mérito de três ações que questionam essa prática do Congresso Nacional.

A decisão da ministra Rosa Weber, confirmada pelo plenário do STF, determinou ainda, “quanto ao orçamento dos exercícios de 2020 e de 2021, que seja dada ampla publicidade, em plataforma centralizada de acesso público, aos documentos encaminhados aos órgãos e entidades federais que embasaram as demandas e/ou resultaram na distribuição de recursos das emendas de relator geral (RP-9), no prazo de 30 (trinta) dias corridos”.

Foto | Alan Santos/PR

E o que aconteceu depois disso? Um ato conjunto das mesas diretoras da Câmara e do Senado, editado ainda em novembro, deixou clara a disposição das duas casas legislativas – representadas por Arthur Lira [PP/AL] e Rodrigo Pacheco [PSD/MG], respectivamente – de desobedecerem a decisão da Suprema Corte. No referido ato, Lira e Pacheco arguem “a impossibilidade fática de se estabelecer retroativamente um procedimento para registro das demandas” de emendas de relator dos orçamentos de 2020 e 2021. Esse argumento é desbancado pela própria Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado que, em elucidativa nota técnica assinada pelo consultor legislativo de orçamentos Fernando Bittencourt, declara que “não há ‘impossibilidade fática’, porque o que manda a liminar não é estabelecer retroativamente um procedimento para registro de demandas, mas sim divulgar os elementos e documentos que já existem”. A resolução nº 2 do Congresso Nacional, aprovada no início de dezembro, altera superficialmente a resolução de 2006 que trata das emendas de relator, enfatizando que mesmo essas alterações “somente serão aplicáveis às indicações do relator-geral realizadas após a data de publicação” da resolução de dezembro, “aplicando-se às indicações e solicitações anteriores a essa data o que consta no Ato Conjunto das Mesas do Senado e da Câmara dos Deputados nº 1, de 2021”.

Após o presidente do Senado se reunir com Rosa Weber para conversar sobre o aparente conflito de decisões, eis que no dia 6 de dezembro a ministra liberou a retomada da execução das emendas de relator, que estavam suspensas por decisão anterior da Corte. Na quinta-feira [16] o plenário virtual do Supremo confirmou a nova decisão da relatora do caso e tudo voltou a ser como dantes no quartel d’Abrantes.

Matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo no dia 13 de dezembro, assinada por André Shalders, aponta que, à exceção das capitais, as cidades brasileiras que mais receberam verbas secretas das emendas de relator em 2020 e 2021 são ligadas ao próprio Rodrigo Pacheco [PSD/MG], ao ex-líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho [MDB/PE], ao ex-presidente do Senado, Davi Alcolumbre [DEM/AP] e ao deputado federal Domingos Neto [PSD/CE], relator-geral do orçamento de 2020. Quando analisado apenas o ano de 2021, Arthur Lira [PP/AL] também aparece entre os parlamentares que mais se beneficiaram dos recursos do chamado orçamento paralelo.

A distopia em que estamos mergulhados tem como um de suas marcas o sequestro das instituições, afastadas de suas funções públicas primordiais e colocadas a serviço dos interesses pessoais de alguns para, por exemplo, assegurar a impunidade de parentes, aderentes e amigos, quando não, de si próprios. Nesse contexto, a Polícia Federal [PF] vem sendo colocada a serviço da proteção da família Bolsonaro e seus amigos e da perseguição a desafetos e adversários políticos, como conta o repórter Alan de Abreu, em matéria publicada na edição 182 da revista Piauí. “A máquina bolsonarista dentro da PF não se limita ao jogo de pressões sobre a cúpula, mas chega a ponto de mudar diretorias regionais e, até mesmo, delegados e agentes. É uma tomada ampla da estrutura”, destaca Alan. Um levantamento realizado pelos jornalistas Guilherme Amado e Lucas Marchesini, publicado no site Metrópoles, apurou que até meados de novembro deste ano, o governo Bolsonaro já havia punido ou afastado dezoito delegados e delegadas da instituição, como forma de retaliação por terem contrariado os interesses do clã Bolsonaro e de seus apadrinhados.

Nesse lugar ruim em que o Brasil foi lançado, chegamos ao absurdo da distopia pactuada, escancarada na indicação do general da reserva Fernando Azevedo e Silva, ex-ministro da Defesa do governo Bolsonaro, para a direção geral do Tribunal Superior Eleitoral [TSE]. No final de maio de 2020, Azevedo, para quem o golpe de 1964 foi “um marco para a democracia”, sobrevoou – ao lado de Bolsonaro e em helicóptero militar – uma manifestação de apoiadores do antipresidente, em que pediam o fechamento do Supremo e defendiam intervenção militar. No TSE, o ex-ministro de Bolsonaro terá sob sua coordenação a área de Tecnologia da Informação que, dentre outras atribuições, fiscaliza o funcionamento e a segurança das urnas eletrônicas, alvo de incontáveis ataques por parte de seu ex-chefe no Planalto.

Essa não será a primeira passagem de Azevedo pelo Judiciário. Em 2018, quando o país era presidido pelo golpista Michel Temer [MDB] e o Supremo estava acuado por um tuíte de outro verde-oliva, o general Eduardo Villas Bôas, Azevedo ocupava o cargo de assessor de Dias Toffoli, à época presidente do STF. A postagem do então comandante do exército, de tom golpista camuflado, foi feita às vésperas do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva [PT], que poderia mantê-lo na disputa eleitoral de 2018 ou retirá-lo do processo. O STF decidiu que Lula, o candidato com quase 40% das intenções de voto, não poderia participar do pleito. Com o petista fora da disputa, Bolsonaro foi eleito em segundo turno naquela eleição e nomeou o general Fernando Azevedo como seu ministro da Defesa. Somente em um contexto de utopia negativa é possível imaginar que os principais herdeiros de um regime que prendeu, torturou e matou milhares de pessoas, possam chancelar uma democracia, por mais acanhada que ela se apresente.

Enquanto isso, na Procuradoria-Geral da República, Augusto Aras segue com sua missão inabalável de fidelidade e subserviência a Bolsonaro, mesmo depois de ter visto seu sonho de se tornar ministro do STF evaporar-se com a indicação de André Mendonça, já que esta pode ter sido a última indicação para o Supremo, feita por seu protegido no Alvorada. Novas indicações só viriam com uma reeleição de Bolsonaro, o que parece pouco provável que aconteça, pelo menos no cenário de hoje. No final de outubro deste ano, o site de revista semanal francesa L’Express publicou uma matéria assinada por Chantal Rayes, traçando um breve perfil de Augusto Aras. A manchete o anuncia como o procurador que protege Jair Bolsonaro e destaca que só ele pode iniciar um processo penal contra o presidente. “E é um paradoxo, porque Augusto Aras, o polêmico procurador-geral do Brasil, também se passa pelo ‘escudo’ de Jair Bolsonaro, cujas ações deveria, no entanto, controlar”, enfatiza o site francês. Diante do conluio entre Aras e Bolsonaro, resta recorrermos ao Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, na Holanda.

Mendonça, o terrível

Muito tem sido comentado sobre a indicação de um evangélico para o STF o que, em si, não é problema, já que a escolha entre esta ou aquela – ou nenhuma – religião é uma questão de foro íntimo. O que deve estar em discussão não é o fato de um pastor presbiteriano ser ministro da Suprema Corte do país, mesmo porque vários outros integrantes daquela casa – se não todes – estão vinculados a alguma religião. Aliás, vale lembrar que André Mendonça não será o primeiro evangélico a tomar assento como ministro do STF. Entre 1957 e 1966 uma das togas do Supremo pesava sobre os ombros do mineiro Antônio Martins Vilas Boas, que antes dali fora diácono da Primeira Igreja Batista em Belo Horizonte e professor da Escola Bíblica Dominical.

Foto | Pedro Ladeira

A questão em relação a Mendonça não é o fato dele ser evangélico, mas de sua perspectiva teológica e sua militância religiosa terem sido usadas como pré-requisito para a indicação. Como declarou o próprio Bolsonaro, seu ex-ministro estava sendo indicado por atender ao critério extraconstitucional de ser “terrivelmente evangélico”. Portanto, não se trata de qualquer evangélico, mas de alguém que, guiado por suas crenças religiosas, está comprometido com uma agenda de costumes de forte viés fundamentalista, que abarca uma parcela dos evangélicos, mas também de outras religiões, a exemplo dos católicos.

E aqui é muito importante enfatizar que não podemos colocar todo o vasto campo evangélico no mesmo balaio, tomando por referência lideranças fundamentalistas como Silas Malafaia, Edir Macêdo, Valdemiro Santiago, Milton Ribeiro [atual ministro da Educação] e Damares Alves [atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos]. Engajades numa perspectiva teológica crítica e libertária, eticamente comprometida com a vida, estão lideranças evangélicas como Henrique Vieira, Ariovaldo Ramos, Pâmella Campos, Odja Barros e Camila Mantovani, só para citar algumas referências.

Voltando a André Mendonça, é bom lembrar que ele chega ao STF abraçado com duas forças políticas que não lhe darão trégua e têm pressa na cobrança da conta. De um lado, Jair Bolsonaro espera seu compromisso fiel com as pautas de interesse de seu governo, a exemplo do marco temporal para terras indígenas, e com os próprios processos contra ele e seus filhos. No último dia 17, Mendonça foi sorteado para relatar três notícias-crimes contra o ex-chefe, todas relacionados à confissão pública de Bolsonaro de que interferiu no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional [Iphan] para favorecer seu aliado Luciano Hang, da Havan. A ver como Mendonça lidará com essa batata quente, recebida já na porta de entrada. Ao mesmo tempo, o novo ministro do STF terá que lidar com a pressão das lideranças evangélicas fundamentalistas, aí incluídas aquelas com cargos no próprio governo e no parlamento, para votação em pautas polêmicas em alinhamento com seus interesses. A atuação futura de André Mendonça como ministro do Supremo inspira preocupação e poderá representar uma séria ameaça aos direitos humanos e à democracia, não por ele ser evangélico, mas por ter se mostrado durante sua passagem pelo governo Bolsonaro, tão terrível quanto aqueles que patrocinaram sua indicação ao cargo.

Estupro e morte da Amazônia

Duas semanas depois de Joaquim Leite, ministro do Meio Ambiente do Brasil, comprometer-se na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima [COP-26] com uma agenda que, por razões óbvias, não será honrada pelo atual governo, vimos o Rio Madeira, um dos mais importantes da Amazônia e o rio com a maior biodiversidade no mundo, ser ocupado por centenas de balsas de garimpo. A atividade, mesmo quando realizada ao arrepio da lei, é estimulada por Bolsonaro que, em outubro deste ano, visitou um garimpo ilegal na TI Raposa Serra do Sol [RR] e voltou a defender a exploração de garimpo em terras indígenas.

Além da desestruturação social das comunidades locais, das precárias condições de trabalho, da degradação dos solos e do desmatamento, o garimpo causa graves problemas à saúde de comunidades inteiras, especialmente pelos efeitos do mercúrio, um metal neurotóxico usado para separar o ouro de outros sedimentos. Com danos graves e permanentes para a vida, em humanes o mercúrio pode causar problemas de ordem cognitiva e motora, perda de visão, alterações de humor, tremores, ansiedade, distúrbios no sono e depressão, além de implicações renais, cardíacas e no sistema reprodutor.

Um levantamento do jornal Folha de S.Paulo, publicado no último dia 5 em matéria assinada por Vinicius Sassine, aponta que, somente em 2021, o general da reserva Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República [GSI] e um dos principais conselheiros de Bolsonaro, autorizou sete projetos de pesquisa de ouro em uma das áreas mais preservadas da Amazônia. A Cabeça do Cachorro, como é conhecida a área liberada por Heleno para pesquisa de mineração, está localizada em São Gabriel da Cachoeira, a cidade mais indígena do Brasil. A Folha apurou que “Heleno concedeu 81 autorizações de mineração na Amazônia desde 2019, entre permissões de pesquisa e de lavra de minérios. A maior quantidade foi em 2021: 45, conforme atos publicados até o último dia 2, sendo essa a maior quantidade num ano desde 2013. O número pode aumentar, pois pode haver novos atos em dezembro”.

O território Cabeça do Cachorro está localizado no extremo noroeste do Amazonas, na fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela e, nos termos do artigo 91 da Constituição de 1988, “os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional” e a opinião “sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo” estão vinculadas ao Conselho de Defesa Nacional [CDN], “órgão de consulta do Presidente da República nos assuntos relacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático”. O CND é composto pelo vice-presidente da República, pelos presidentes da Câmara e do Senado, pelos ministros da Justiça, da Defesa, das Relações Exteriores e do Planejamento [atualmente Economia], além dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, tendo como secretário-executivo o ministro do GSI. Ou seja: a distopia patrocinada por Heleno e Bolsonaro conta com a anuência, inclusive, dos presidentes do parlamento e dos comandantes das forças armadas.

Enquanto o ministro Joaquim Leite mentia em Glasgow e assumia compromissos fora da realidade e dos interesses do governo que representa, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais [Inpe] já havia concluído o mais recente levantamento da taxa de desmatamento na Amazônia Legal, que coloca 2021 como o ano com os piores resultados desde 2006. São mais de 13 mil km² de área desmatada entre agosto de 2020 e julho de 2021, o que representa um aumento de 22% em relação ao mesmo período encerrado em julho de 2020, que por sua vez já havia sido pior que os resultados publicados em 2019, que já tinham superado negativamente os dados do período anterior. Em outras palavras: a questão ambiental no governo Bolsonaro só piora a cada ano, como pode ser visto sem maior esforço, especialmente na Amazônia.

Foto | Dal Marcondes

Em julho de 2019, ao comentar pressões estrangeiras contra o aumento do desmatamento e a favor da preservação da Amazônia, Bolsonaro comparou o Brasil [se referindo, na verdade, à Amazônia] a “uma virgem que todo tarado de fora quer”. Em seu mais recente livro, Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia Centro do Mundo [2021], a jornalista Eliane Brum escreve que “na vasta bibliografia de frases racistas, misóginas, homofóbicas e de incitação à violência cometidas pelo político profissional de ultradireita, nenhuma outra foi tão reveladora da forma como Bolsonaro enxerga e trata a maior floresta tropical do planeta”. Para Bolsonaro, diz Eliane, “a Amazônia é uma mulher cujo corpo lhe pertence para fazer dele o quiser”. Mais adiante a jornalista nos lembra que “não há possiblidade de um homem como Bolsonaro compreender o debate sobre a Amazônia nem sobre as mulheres fora da lógica da violação, da posse e da exploração”.

Ao associar a Amazônia à imagem de uma virgem desejada, enquanto autoriza e estimula sua violação por garimpeiros, grileiros e outros machos, Bolsonaro escancara sua misoginia e sua visão doentia de autorização da violência contra a mulher, expressas em ataques reiterados a parlamentares mulheres e jornalistas mulheres, por exemplo.

Uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal [MPF]² contra a União, em agosto de 2020, pede a reparação e também o pagamento de indenização por danos em razão de “declarações públicas carregadas de preconceito e discriminação contra as mulheres, bem como ações administrativas que afrontam o ordenamento jurídico em razão dessa condição (de mulher), declarações essas levadas a efeito no exercício e na representação das funções públicas”. Na referida ação judicial o MPF lista uma séria de declarações feitas pelo próprio presidente Bolsonaro, mas também pela ministra Damares Alves, pelo ministro Paulo Guedes e pelos ex-ministros Sérgio Moro e Ernesto Araújo. A coleção de frases asquerosas e arroubos autoritários é vasta.

Como os povos originários e muitas das comunidades tradicionais que vivem na Amazônia são também a própria floresta e toda a vida a ela integrada, a violência que estupra e mata a Amazônia recai, inevitavelmente, sobre esses povos e comunidades. Contudo, há uma violência cada vez maior direcionada aos corpos humanes que assumem o papel de defesa da Amazônia como centro do mundo, como lugar de referência e signo da vida planetária. Nessa distopia chamada Brasil que é, em grande medida, a reprodução da distopia de um capitalismo cada vez mais perverso e voraz, todes que teimam em existir fora da bolha e das regras do deus mercado e seus genocidas de plantão, representam uma ameaça e, portanto, são elimináveis. São matáveis. Assim tem sido com os povos originários e as comunidades tradicionais, especialmente suas lideranças. Assim tem sido com as gentes das periferias, especialmente suas juventudes negras.

Quando os ratos saem do esgoto

Uma das marcas da distopia neofascista e miliciana à qual Bolsonaro está associado é a emersão da estupidez, do ódio e da violência como método e caminho. Não são poucos os casos de intolerância religiosa, homofobia, transfobia, misoginia, apologia a torturadores e várias outras formas de violência, protagonizadas por seguidores do presidente Bolsonaro, seja aquele “ilustre” desconhecido de um lugar qualquer deste país, seja um parlamentar, como o deputado Daniel Silveira [PSL/RJ], ou um apresentador de televisão e empresário, como Carlos Roberto Massa, o Ratinho.

No dia 15 de dezembro, durante o programa Turma do Ratinho, da Rádio Massa FM, o apresentador mandou a deputada federal Natália Bonavides [PT/RN] lavar a cueca do seu marido e sugeriu “eliminar esses loucos”, referindo-se à deputada e aos que defendem iniciativas como a que motivou seu ataque raivoso à parlamentar, autora de um projeto de lei que propõe a substituição do gênero na declaração final das cerimônias civis de casamento, pela expressão “declaro firmado o casamento”. Atualmente, ainda é usada, indistintamente, a expressão “os declaro marido e mulher”, mesmo no caso de cerimônias de casais homoafetivos. Ratinho encerrou seus insanos ataques à deputada perguntando se “não dá para pegar uma metralhadora”, numa clara incitação à violência contra a parlamentar.

Essa não é a primeira vez que Ratinho e vários outros nomes do rádio e da televisão, a exemplo do apresentador Sikêra Júnior, usam seus programas para incitar o ódio e a violência. O episódio mais recente envolvendo o apresentador Carlos Massa evidencia a urgência do debate, por diversas vezes protelado, sobre a regulação da mídia no Brasil, que nada tem a ver com censura, mas com a necessidade do estabelecimento de regras claras e transparentes para prestação de um serviço que se dá a partir de uma concessão pública.

Foto | Joelmir Pinho

Luzes no fim do túnel

Em seu livro Nomear para combater: uma tentativa de organizar a raiva para virar pensamento [2021], a diretora de teatro e feminista Nicole Aun nos convida a pensar sobre “a quem serve a vida tal qual vivemos hoje? A quem serve uma engrenagem em que 2.153 bilionáries do mundo concentram cerca de 60% da riqueza global, enquanto milhões e milhões passam fome todos os dias?”. Como nos lembra Nicole, somos seres culturais. “Precisamos de narrativas, pois são as narrativas que constituem nossa cultura e que determinam o que somos enquanto sociedade”. Quem criou a narrativa que rege as nossas vidas nos dias de hoje é a pergunta central apresentada pela autora de Nomear para combater.

Reconhecer que essa distopia em que fomos atirados não nos serve talvez seja o primeiro passo para rompermos as correntes que nos aprisionam, furarmos a bolha e retomarmos a tessitura de um mundo pautado por uma pedagogia da interdependência e do cuidado e por uma perspectiva radical de democracia, incluindo a democratização da própria economia que, como prática humana, está intimamente ligada à cultura. E em contextos culturais cada vez mais diversos, é fundamental rompermos com o imperativo da economia única e acolhermos a perspectiva da pluralidade econômica, a partir da centralidade da vida, em contraponto à lógica sobrejacente de centralidade da economia, que deve sempre ser meio e nunca um fim em si mesma. Além disso, como tenho falado e escrito insistentemente, para desatarmos o nó górdio que mantem o Brasil preso a essa distopia na qual fomos atirados, será fundamental vencermos o medo e reaprendermos a amar.

Contudo, como nos ensina a escritora bell hooks, uma das principais vozes do feminismo negro mundial, no texto Vivendo de Amor, “precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar”. Daí, a essencialidade e a urgência de rompermos com toda e qualquer forma de opressão. Vamos nessa?


Joelmir Pinho é educador, gestor social, escritor e aprendente. É autor dos livros “Janelas, uma coletânea de ideias e opiniões” [2019] e “Insurreições” [2021], ambos publicados pelo selo editorial IbiKariri e disponíveis no site da Amazon. É também associado fundador e atual diretor geral da Escola de Políticas Públicas e Cidadania Ativa [EPUCA]. Graduado em Administração Pública e Gestão Social pela Universidade Federal do Cariri [UFCA] e mestrando em Desenvolvimento e Gestão Social na Universidade Federal da Bahia [UFBA].

¹Conceito apresentado ao mundo pelo antropólogo e médico estadunidense Merrill Singer, no início da década de 1990. Segundo Singer, existem interações mutuamente agravantes, que se retroalimentam e se somam entre os problemas de saúde e o contexto social e econômico das populações onde a desigualdade é um fator determinante. Portanto, é fundamental olharmos para o cenário que estamos vivendo atualmente de forma mais ampla, com uma perspectiva mais alargada, para além do SARS-CoV-2 e do próprio campo da saúde.

²A ACP foi subscrita pela procuradora regional dos Direitos do Cidadão, Lisiane Braecher, e pelo procurador da República, Pedro Antonio de Oliveira Machado.

Publicado por Joelmir Pinho

Um militante em defesa da vida humana e não humana. Um aprendente e um pensador conectado com os saberes e fazeres das gentes simples dos sertões. Um apaixonado pela vida e pela arte do bom viver a partir da comunhão, da partilha e do cuidado como compromisso ético.

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